Vênus na Janela

Andrew/Deirdre
23 min readDec 27, 2018

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Meu querido Sebastian,

Ando tentando organizar estas palavras que escrevo para você já faz algum tempo. As outras palavras escoaram pelo coador, então peguei estas que não escaparam pelo cano e as cozinhei por tempo suficiente para torná-las digeríveis.

Colecionar palavras era somente um dos nossos passatempos favoritos. Você anotava um “preâmbulo” no rodapé da primeira folha em branco que encontrava, e eu encurvava o tal preâmbulo numa poesia despreocupada com métricas e rimas. Nunca fui muito bom com poemas, detestava os que fazia. Você amava, não sei se fingia, e se fingia fazia isso muito bem. Apaixonado pelos detalhes, nada escapava de você.

Seus deuses favoritos moravam em Athenas, volta e meia eu tinha que folhear alguns livros para entender suas referências e as parábolas, tantas delas jorradas sobre os meus ouvidos que eu me sentia um mero tolo que não sabia de nada sobre o panteão divino das entidades miraculosas.

Eu sabia quando mais novo, engolindo as obras como quem não tem tempo a perder. Os entulhos caíram na minha cabeça e eu me esqueci da maior parte do que li. Ainda que me recordasse do rapaz que perscrutou pelos mundos submersos para gritar o nome de sua amante enquanto era despedaçado. Tão assustado fiquei, que decidi não mais revisitar aquela história. Ela apenas se encravou de modo denso e incisivo como naquela vez em que você me puxou para um beijo.

Eu odiei aquela sua dominância. Tão arrogante e ferino no seu modo de agir e falar que ainda me chegam dúvidas sobre a ordem certa das coisas. Não me entenda mal, é claro que eu queria, eu só não sabia do momento exato para agir. Você me roubou também a primeira oportunidade que eu teria de tomar uma atitude que fosse contra os meus hábitos genuínos.

O parque havia chegado na cidade, um parque de procedência duvidosa. Repintado tantas vezes que os funcionários pareciam se convencer de que poderiam muito bem enganar quem chegava por ali. Sonhara uma semana atrás com este parque. Era diferente, pois fora construído sobre nuvens espessas e cinzentas. E cada brinquedo chacoalhante causava relâmpagos, e o grito das crianças na montanha-russa criava trovões na cidade lá embaixo. Um lugar onde os meninos afobados não corriam perigo.

Havia me afastado de todos os meus amigos. Não amava mais nenhum deles. Era difícil admitir isso em voz alta. Os amigos me serviram por um tempo, e depois não me cabiam mais. A solidão me cabia melhor, já que sempre fiz tudo sozinho. Fazia meu próprio almoço quando papai não estava em casa. Meus deveres quando ele estava cansado demais para me ajudar com as sílabas. E papai me deixava livre para tomar todas as minhas decisões, até de sair da escola para aprender no meu quarto, sem interrupções, contanto que eu o ajudasse a cuidar de mamãe nos fins de semana. Eu gostava das outras crianças, tinha os vizinhos para brincar ocasionalmente, mas na escola era tudo tão distinto com aquela procedência de ordens e organizações que ficava mais irritado do que concentrado.

Antes de decidir visitar o parque liguei para o papai. Só de hábito, para saber como estavam as coisas por lá. E no hábito dele eu recebi os velhos sermões sobre o erro de ter me afastado de todo mundo de uma vez só. Porque não me faria bem, estar tão sozinho e isolado, embora ele soubesse da minha natureza melhor do que ninguém. Coisa de pai: mesmo sabendo, é importante não deixar o sermão de lado.

“Vou ver o que tem de bom naquele parque, talvez eu conheça novas pessoas por lá” — disse para ele antes de desligar o telefone.

O que não se realizou, ao menos não dentro do parque, já que te encontrei no estacionamento chutando a própria motocicleta. Usando todos os nomes mais terríveis para amaldiçoar quem quer que tenha esfaqueado furiosamente o seu pneu. E aquela espontaneidade súbita de querer te ajudar apressou os meus passos antes que eu sequer pudesse regurgitar sobre isso. Você me olhou como se eu fosse o responsável por aquela situação, e só alguns segundos depois entendeu que aquele era um gesto de empatia. Àquela altura, não me restaram muitas opções a não ser rir da sua expressão atônita.

“Calma, homem, só quero te ajudar. Posso te dar uma carona até o posto mais próximo. Meu carro está logo ali” — eu disse.

“Aceito, mas eu posso resolver isso sozinho. Me leva até em casa, tenho um pneu extra lá. Se não for problema” — você respondeu, vencido.

Me arrependi amargamente de ter tomado aquela decisão. Exceto a apresentação dos nossos nomes, não trocamos uma única palavra até chegar no endereço que você havia me dito. Pegando o pneu, um macaco e uma maleta de ferramentas apressadamente. Sua casa tinha um jardim de hortênsias milimetricamente plantado, uma pequena trilha de seixos e gnomos de gesso. Era uma casa bonita, eu queria dizer, mas não disse. Estava apavorado com sua expressão carrancuda. E já que havia me disposto a te ajudar, te levei de volta para o estacionamento do parque e resolvi te esperar terminar de fazer a troca.

“Como você vai agora com esse pneu extra?” — perguntei.

“Eu dou um jeito”.

“Não, pode deixar no meu carro. Eu deixo na sua casa e assim a noite pode terminar”.

“Já me ajudou demais, pode ir embora” — você respondeu.

“Tudo bem então”.

Dei as costas pra ti e ouvi um sonoro “obrigado, Jonathan” enquanto caminhava de volta para o meu carro.

Posso dizer com toda certeza de que o nosso primeiro contato não foi exatamente agradável. Mas senti vontade de te ver novamente, de preferência durante o dia. Talvez por ter te achado estranho demais sob a iluminação amarelada dos postes criando pontos de luz no breu da noite. Ou talvez porque, assim que cheguei em casa, fiquei pensando nos seus cabelos escuros ao vento. Madeixas sinuosas feito longas vírgulas emaranhadas umas nas outras. O nariz imenso e adunco, as sobrancelhas grossas e próximas demais dos olhos escuros que transpareciam uma constante aflição, o que poderia ser um efeito das sobrancelhas. E te ver numa situação de cólera me fez perguntar como você ficaria se estivesse sorrindo.

Na semana seguinte resolvi aparecer de novo na porta da sua casa. Te convidar pra tomar uma cerveja ou coisa parecida. É claro que já tinha cervejas na sua casa, então bebemos no seu jardim porque, bem, você era daquele jeito. Sabes muito bem do que estou falando.

Os dias da enfermidade deixaram tudo mais difícil. E nós não conseguimos resgatá-la. Senti tanta falta daquela tarde quente e descompromissada, sentados na calçada, por tantos outros meses de abstinência que uma parte da história se perdeu. Mas ainda chegarei lá.

Nesta mesma tarde, você me convidou para te assistir naquelas competições que você fazia com o seu grupo de amigos, junto daqueles outros rivais, nos entornos das fábricas abandonadas no porto, pois ali era difícil alguém ser perturbado quando estava afim de fazer as coisas no escuro. Eu evitava passar por ali justamente por esse motivo. Me aborrecia ver aquele amontado de crianças apressando os passos a qualquer sinal de perigo à luz do sol. E a noite tornava-se dos arruaceiros mais velhos, os artistas notívagos dando cores e formas nas paredes metálicas e enferrujadas com seus grafites. Das mulheres nas esquinas e dos motoqueiros como você. As gaivotas faziam silêncio e o cheiro de pneu queimado agredia o ar salino do mar.

E por fim os gritos de júbilo do vencedor. Na primeira noite que testemunhei você havia perdido e resistiu bravamente às provocações dos outros homens. Fazendo aquele ritual de furar as latinhas de cerveja no fundo para beber em grandes goladas, numa prova de macheza ou euforia. Talvez ambos.

Seus amigos estranharam a minha presença na primeira impressão. Talvez por ser um dos poucos ali presentes que não usava uma jaqueta de couro ou aqueles costumes apertados. Preferia os sobretudos, principalmente o meu favorito, um azul-escuro. E um cachecol vermelho que papai havia me dado de presente no último natal quando fui visitá-lo.

O álcool foi um motor que ajudou nesse momento. Zach não parava de falar sobre como te conheceu, e os trigêmeos Ian, Yves e Lucas tinham gostos parecidos com os meus. Assistimos os mesmos filmes e as novelas francesas que uma das emissoras da cidade transmitia. Zach gostava mais das apresentações de balé, havia aprendido a apreciar a arte da dança de tanto assistir sua filha Ísis. Levava-a para todos os cantos da cidade com sua motocicleta.

Seus amigos se despediram às três da manhã e você teve a ideia de fazer o mesmo que Zach fazia. “Não são muitas pessoas que tem o privilégio de subir na minha garupa, então considere isso um elogio” — você disse, pomposo.

“E quem disse que eu quero?” — retruquei, querendo saber se aquela sua expressão de raiva voltaria, mas você apenas soltou um pigarro que na verdade era o seu riso.

“Deixa o seu carro em casa, eu vou contigo até lá. E depois a gente passeia. Que tal?” — você insistiu.

“Já está muito tarde, podemos fazer isso outro dia” — respondi.

“Mas agora é o melhor horário. As ruas estão vazias… Vamos, prometo que não iremos demorar”.

Acabei cedendo àquela sua convicção de que três horas da manhã era um grande momento. E a sua paixão pela noite era tão latente que eu me sentiria péssimo se continuasse recusando o convite. Então assim fizemos.

“Eu vou rápido, segura forte na minha cintura” — você disse.

Os quadros que durante um certo período me fizeram sentir orgulhoso do que eu produzia eram aqueles sobre a cidade. Os pontos turísticos, os transeuntes sem rostos, o céu avermelhado do outono infestando sobre os prédios e as ruas arborizadas. As meninas na bicicleta ali ao longe. As pescadoras de um vilarejo no extremo noroeste da cidade. Eram os quadros que eu mais vendia, porque as pessoas tinham o costume de encher suas casas com paisagens. E numa cidade como aquela, seria um desperdício não apreciar tudo que nos fora dado.

Ao colocar o pequeno capacete e apertar sua cintura, me senti como aqueles transeuntes indefinidos que eu pintava. O vento secou meus lábios e nos primeiros segundos acreditei que a qualquer momento iríamos cair e nos machucar. Como prometido, você era realmente rápido. Meu peito pulsava inconstantemente, esperando que alguma coisa terrível fosse acontecer.

“Eu estou aqui. Ainda não acabei” — você berrou, alegre. Meu nervosismo estava latente e eu apertei sua cintura o mais forte que consegui.

Entendi aquilo como um voto de confiança, de que você não permitiria nenhum acidente. Passado o susto, terminamos a trajetória do lado oeste da cidade após as fábricas. Na rampa larga feita para os turistas apreciarem a nossa vista, e para as nossas crianças passearem com os pais e as avós.

Você gostava de ter a noite só pra ti. Só por ti. Como uma proclamação, uma dominância. Acreditava veementemente nisso, e me convidou para ter contigo pelas noites seguintes. Claro, eu não poderia fazer isso com frequência, tinha quadros para desenhar me esperando em casa. Mas você tinha seus próprios horários na sua oficina. Além de Zach e os trigêmeos trabalharem para você. Ser o chefe proporcionava esses privilégios. Também não era como se você fosse negligente, só chegava um pouquinho atrasado as vezes.

Volta e meia me ligava no meio da madrugada para conversar sobre qualquer assunto. Assombrado pelas coisas que você não me contava, eu atendia na intuição de que precisava fazer isso.

“O que foi?” — eu perguntava.

“Não é nada, só queria falar com alguém” — você respondia.

“Não está conseguindo dormir?”.

“Quase nunca consigo. Vamos passear”.

“Não posso, tenho que ir numa galeria amanhã marcar um compromisso”.

“Então posso ir aí?”

“O que foi, Sebastian? Aconteceu alguma coisa?”

“Deixa pra lá, já estou te perturbando demais”.

“Você não me perturba. Só estou preocupado. Pode vir”.

Não fora apenas aquela vez em que preparei o sofá para você dormir. As vezes ficava assistindo a minha televisão baixinho, mas eu escutava. As vezes quando enfim conseguia pregar os olhos, acordava gritando e socando o ar e eu enchia um copo de água com uma pitada de açúcar para te dar. Suas mãos tremiam sem parar e suas têmporas criavam filetes de suor. E a sala amanhecia com fedor de cigarros que eu não fumava e latinhas vazias na mesinha de frente para o sofá. Alguns dos meus livros tirados da estante e espalhados por todos os cantos. Acabei me acostumando a isso, e a minha casa tomou um novo rumo com a sua presença.

Meu amor, nós sempre conseguimos nos acostumar muito bem aos nossos hábitos que preferíamos esconder entre quatro paredes. Eu realmente nunca me importei com a sujeira das cinzas dos seus cigarros ou seu álcool exagerado. Tinha o costume de limpar minha casa frequentemente porque me fazia sentir no controle da situação. Aquele outono passou voando e eu pude ter um tempo para descansar, minha exposição havia sido próspera e resolvi tirar um mês para me tornar apenas um doméstico. Imaginando sobre as novas coisas que pintaria, as paisagens já estavam me cansando.

Tive a ideia de te desenhar e você me olhou como se eu tivesse acabado de contar que assassinei alguém. Então tivemos uma longa conversa sobre a minha imaginação ressecada pelas paisagens da cidade. Acredito que eu tenha pintado a maior parte da capital, e não fiquei com nenhum daqueles quadros. Um crítico de arte havia me chamado de frívolo e datado numa coluna jornalística e aquilo passou a martelar na minha cabeça mais do que eu gostaria de admitir.

“Então você quer o quê? Que eu tire a roupa? Eu posso tirar, não precisava inventar essa desculpa pra me ver pelado” — você disse em tom de escárnio.

“Não precisa ficar pelado se não quiser” — respondi, fingindo incredulidade. “E você vive tomando banho aqui, não é como se tivesse alguma novidade pra mim”.

“A conta de água aumentou? Eu posso te ajudar nisso, seu pão-duro”.

“Eu só preciso de ajuda com a minha nova coleção. Tenho que mudar. Alguma coisa tem que mudar no que faço. Você poderia?”.

“Está bem, está bem! O que você quer que eu faça? Fique deitado? Eu não sei fazer pose, sou uma mula”.

“Só faça o de sempre: você”.

Busquei um quadro novo e meu tripé no pequeno estúdio que ficava do lado da minha cozinha. Os lápis, os pincéis e o godê para despejar as tintas. Passara a semana esboçando novas ideias e estava na hora de pô-las em prática. Você abriu a janela da sala, tirou a regata branca e acendeu um cigarro. Rascunhei a minha janela maior do que ela realmente era, e resolvi colocar no horizonte o parque aceso sobre as nuvens flutuando pela cidade que havia me visitado num sonho uns dois meses atrás, enquanto o homem com uma grande tatuagem nas costas, de Vênus com sua carruagem de cisnes, assistia e fumava da janela. Os cisnes esticavam seus pescoços até a lateral do seu ventre, e Vênus tinha os cabelos esvoaçantes e cacheados e um corpo curvilíneo num vestido transparente, segurando as rédeas com a mão esquerda e erguendo o braço direito anunciando sua chegada.

“Hoje vou competir. E depois iremos passear. Faz tempo que você não me acompanha, vive enfurnado nesse estúdio, nem parece que tá de férias” — você disse assim que terminei, umas três horas depois, quando já estava na cozinha preparando alguma coisa pra gente comer.

“Feito! Ainda tenho umas duas semanas”.

“Então está combinado”.

Eu ainda não havia visto seu corpo tão de perto. Não daquele jeito. Não naquela intimidade. Seu braço esquerdo era todo fechado de desenhos, Apolo e Jacinto abraçados e deitados numa cama de rosas azuis, mas minha tatuagem preferida continuava sendo a de Vênus em suas costas. Eu não era largo como você, não tinha os seus ombros e a sua saúde. Minha aparência era quebrável e a sua, invencível. Seu cheiro de loção pós-barba se misturava ao odor dos cigarros. Você notou meu nervosismo quando se aproximou para conversar olho-no-olho e resolveu buscar minha mão para colocar sobre a sua calça. Estava duro e fervia e o beijo roubado que tu me deste me fez notar que aquela era uma vontade que eu tinha: a de tomar iniciativa por conta própria. Eram raras essas ocasiões, te ajudar no estacionamento do parque havia sido uma delas. E entendi por que meus passos haviam se apressado na sua direção.

Nunca me dei muito bem com meu corpo, era estranho e quadrado, marcado por cicatrizes de outrora e um problema com alergias que deixavam algumas partes da minha pele mestiça com uma textura áspera. Apesar disso, o seu olhar era de pura admiração e demorei um pouco para me dar conta de que nada daquilo importava neste momento de entrega.

Você me carregou até o meu quarto elaborando um enorme sorriso e me despiu, todo afobado. Chupou meus mamilos e desceu com a língua até as minhas coxas. Beijou cada um dos meus dedos dos pés para então abrir-me as pernas. Prostrou-se sobre mim feito um telhado de pele pelos e tinta que gotejava suor e ecoava gemidos latentes. E na maior parte daqueles dias transamos incansavelmente e eu havia me acostumado ao seu jeito de me lamber por inteiro feito uma fera marcando seu território. E eu nunca fui seu ou de ninguém, e você tampouco era, mas naquele momento éramos. Te ensinei com a minha boca chupando entre as suas nádegas e o quanto você poderia se regozijar com a dor para te penetrar também. Aos poucos aprendeu a se empinar e a se abrir para que eu pudesse ir mais fundo, com Vênus me assistindo à visitação de sua morada.

Dançávamos pelados na sala e você me deu aulas de tango na sua casa. Cada dia vinha com uma surpresa diferente. Colecionava palavras e me desafiava a fazer poesias, alegando que eu deveria trabalhar a minha cabeça o máximo que conseguisse. Dizia que o poder da linguagem era importante para os desenhos. E na noite corríamos na sua motocicleta e eu te assistia competir com os outros homens e os quadros nasciam da fonte da minha imaginação feito água. Meu querido Sebastian, não me lembro de qualquer outra época em que tantas coisas boas aconteceram ao mesmo tempo. À parte o perigo daquelas corridas e as provocações da gangue rival em que você se controlava ao máximo para não terminar em briga. Esquentado do jeito que era, eu diria que aquelas situações se tornavam grandes desafios para você. E Sebastian vencia todos eles.

Até que o mundo voltou a pesar. Seus pânicos noturnos pioraram após aquela manhã em que encontramos a resposta para tudo.

Levei a menina Ísis para a minha nova exposição, e também convidei os trigêmeos que apareceram e receberam olhares de condenações por aquele bando de engomadinhos elitistas. Bem, Ian, Yves e Lucas ignoravam plenamente. Estavam acostumados com isso em qualquer lugar. Fiz um quadro de Zach e sua filha e queria presenteá-los ali, mas Zach, orgulhoso como um pavão-macho, fez questão de pagar pela obra. A menina Ísis soltou gritinhos de euforia e me deu um abraço longo e apertado. Era amarronzada como o pai e herdara o mesmo rosto felino e pequeno.

Também desenhei os trigêmeos recostados em suas motocicletas assistindo o sol desaparecer na rampa. E eles decidiram comprar também, me agradecendo repetidas vezes por aquilo. “Ninguém nunca havia feito isso pela gente”, Ian disse. “Bem, nós são somos exatamente vistos com bons olhos”, Yves acrescentou, e Lucas só sussurrou um “muitíssimo obrigado” para então voltar a assistir as minhas outras obras. Você presente em muitas delas. Deitado na minha cama, escovando os dentes, fazendo uma nova tatuagem, trabalhando na oficina com a sua gangue. A gente dançando tango, a gente correndo pela cidade na madrugada.

A gente.

Fiquei cinco dias sem te ver depois da exposição. Também resolvi não ligar, talvez você estivesse ocupado demais com os seus assuntos e não queria ser perturbado. Pois era sempre você que ligava e aparecia e fazia os convites. O tempo também acelerava assim que eu entrava no meu estúdio. E minha preocupação me deu uma vontade súbita de conversar com papai para lhe contar tudo.

“Esse moço te faz bem, filho?” — ele perguntou.

“Ele é ótimo, pai. Estou muito feliz”.

“Então acho melhor você checar para ver o que está acontecendo. Talvez ele esteja esperando que você faça isso”.

“Tens razão. Não sei por que estou protelando”.

“Você só está com medo. Não fique. Você confia nele, é isso que importa”.

“Sinto saudades do senhor”.

“Também sinto. Aparece aqui quando puder. Estou cuidando da sua mãe sozinho, demiti a enfermeira, já está quase na hora”.

“Não fale desse jeito. Aí que fico mais preocupado”.

“Pois não se preocupe, é só a vida tomando o seu rumo. Vá se resolver com seu moço. Amo você”.

“Também te amo”.

Segui os conselhos do pai e te encontrei na oficina. Zach havia faltado nesse dia. Lembro-me muito bem. A visão do seu rosto machucado e inchado afrouxou as articulações dos meus joelhos, te abracei e te beijei ali na frente dos clientes que não tiravam os olhos da gente, curiosos. Notei que Lucas também estava com um olho ferido. Ian estava com a cabeça embaixo de um carro, então não dava para vê-lo. Ouvi Yves tomar a atenção das pessoas e você pegou a sua motocicleta para conversarmos na sua casa. Sentamos ali na sua calçada como no nosso primeiro encontro que não foi exatamente um encontro oficial, mas eu coloquei na minha cabeça que havia sido.

“O que foi, Sebastian?”

“Por que você não me ligou?”

“Me desculpa”.

“Achei que a gente tava junto” — você disse, melancólico.

“Mas a gente tá. Foi erro meu. Achei que você… Não sei o que achei, na verdade. Me desculpa, mesmo”.

“Tudo bem, minha cabeça tem estado em outro lugar também, com tudo que tem acontecido”.

“Me conta, por favor. Onde está Zach?”

“Pedi pra ele ficar em casa hoje. Ele também está sem condições de trabalhar. Apanhou feio. Terça foi uma noite tenebrosa, ainda bem que não te chamei. Descobrimos que Lucas andou sendo ameaçado pra continuar vendendo uns bagulhos daqueles caras. Foi se envolver com eles sem falar nada pra gente. Disse que só queria arranjar uma grana extra pra faculdade. Acabou que ele pediu nossa ajuda quando a situação piorou e tudo virou uma bagunça. Bem, você já pode imaginar o que veio em seguida. E ontem, meu Deus, ontem…”.

“O que tem ontem?”

“Já fez um dia que Ísis não voltou da aula de balé. Estamos procurando, vou fechar a oficina mais cedo hoje para continuarmos a busca. E também não podemos chamar a polícia ainda, por conta de Lucas e da oficina. O moleque escondeu umas coisas nela e a gente ainda tem que dar um jeito de nos livrar daquela merda. Se fizerem perguntas ou investigações, precisaremos estar blindados de qualquer imprevisto. Ele só foi contar que escondeu hoje de manhã. Vamos esperar anoitecer para fazer tudo. E também já conversei com alguns amigos para fazerem a busca, estão desde cedo me fazendo ligações pra atualizar da situação”.

“Nada ainda?”

“Nada”.

Mesmo não me falando dos seus sonhos quando você acordava gritando e se debatendo, eu me tornei a sua companhia que não te enchia de perguntas sobre as lágrimas que brotavam dos seus olhos escuros. Seu corpo se encurvava como um animal se protegendo dos caçadores e eu te envolvia de pé, na sua frente, para que você pudesse continuar chorando sentado na beira da cama. Era o único momento em que eu alcançava além da sua altura. Segurando a minha curiosidade e dando espaço ao discernimento do que era realmente necessário para te acalentar. Seus choros eram gemidos áridos, bruscos, um vai-e-vem de soluços tal uma coruja piando numa árvore.

E agora que sabia do motivo daquelas novas lágrimas, que não vieram em consequência dos seus pesadelos, fiquei sem saber o que fazer. Se te abraçava, se te beijava, se buscava um copo de água. E você decidiu segurar minha mão bem forte e me olhar nos olhos. Todos amávamos Ísis. Ísis enchia os espaços com a sua luz, seu corpinho esticado do balé, seu rosto que sorria por inteiro e as covinhas que se criavam naquele sorriso.

Passei a madrugada acordado contigo, Zach, Lucas e vários outros motoqueiros rasgando as motocicletas pela cidade. Ian e Yves haviam se encarregado de tirar os pacotes da oficina e escondê-los em outro lugar, para enfim contatar a polícia. Mesmo dirigindo lentamente e parando nas casas e nos bares para perguntar às pessoas, não consegui ter olhos para a cidade e a cidade me pareceu ameaçadora. A cidade engolia aqueles que dirigiam pela madrugada. A cidade não nos dava esperança.

Terminamos na costa após a rampa onde viviam os marinheiros em casebres improvisados e as senhoras que acordavam às cinco da manhã para vender os peixes nas feiras do mercado municipal. Próximo de um farol abandonado e uma estranha casa carcomida erguida sob palafitas e pendida perto dos rochedos. Onde, diziam, uma família já havia morado lá séculos atrás. Antes mesmo de construírem aquele farol.

As pescadoras se solidarizaram a nos ajudar e entramos até mesmo no farol para procurar por Ísis. Já amanhecia quando uma senhora gritou enquanto outras duas voltavam das ondas trazendo um corpinho pálido e amolecido. Zach correu mais rápido do que todos nós acompanhando a mulher que fazia o processo de ressurreição para que Ísis pudesse expelir a água dos seus pulmões. Tirando a sua jaqueta para protegê-la do frio e soluçando baixinho “acorde, acorde, acorde”, segurando a mão gelada da filha.

Um longo minuto se passou e o sol tangerina se espreguiçava sobre o céu e trazia Ísis de volta à vida. Ísis estava tão machucada que acordou apenas para desmaiar novamente. Sabíamos o que aquilo significava. A cidade era uma terra dos homens. E nós, os outros homens, não conseguimos resgatá-la do que aconteceu.

Queria te contar, meu caro Sebastian, que visitei Ísis semana passada. Ela estava bem, andava normalmente, me esboçou apenas um sorriso reservado e praticamente imperceptível enquanto me apresentava os dois filhos e o marido. Sua casa era rodeada de muros altos infestados de trepadeiras, e havia uma amoreira em seu quintal. Cultivava louros, arrudas, guinés, e um jardim de lírios. Dizia ela que era para proteção. E um belo vitral recôncavo verde e azul na porta de entrada. Convidou-me para fazer uma trilha até a cachoeira que ela mais gostava, e tinha em sua sala o quadro que pintei anos atrás dela e do pai. Os seus meninos não haviam conhecido o avô, mas ela sempre lhes contava histórias sobre Zach, como uma maneira de continuar o seu legado. Os meninos amavam o avô, e como amavam.

Aquele eterno dia no hospital aguardando pelo quadro de Ísis desestabilizou a todos nós. E contigo a situação foi ainda mais fundo. Seus pânicos noturnos, que antes haviam diminuído de frequência, voltaram numa força descomunal. Na pior de todas as crises eu tentei te acordar e você pulou sobre mim me apertando o pescoço, até se dar conta, em meio aos meus socos, que a pessoa que as suas mãos sufocavam era eu.

“Já chega, Sebastian. Você precisa de ajuda. Precisa ir num médico. Isso não vai passar… E você tem que parar de beber!” — esbravejei.

“Eu não vou porra nenhuma, não estou louco”.

“Não foi isso o que eu disse”.

“Então o que ir num médico significa?”

“Que eu não posso te ajudar sozinho. Isso é muito, demais. Está além. Estou cansado de ti”.

“Me perdoa, Jonathan. Por favor. Eu não sei o que estava fazendo. Juro”.

“Vou preparar o sofá. Não vou conseguir pregar os olhos contigo do meu lado”.

“Não, vou pra casa. Já te perturbei por mais tempo do que você possa aguentar”.

“Então vai, porra! Faz o que você quiser!”.

Minha voz estava fraca demais para continuar aquela discussão. E meu pescoço doía como se tivessem me surrado com um ferro quente. Meu corpo inteiro tremia e você se levantou para dar um soco na parede, completamente derrotado.

Você nunca me perturbou, Sebastian. Você me preocupava. Há um enorme abismo de diferença nestes dois sentimentos. Acho que eu poderia ter insistido um pouco mais para você ficar e dormir na sala, até que esperássemos pelo dia seguinte. Acho que eu deveria ter falado. Se eu tivesse feito isso, como estariam as coisas agora?

Sei que o fato de me machucar inconscientemente foi demais para você. Percebi no seu olhar o tamanho do desprezo que tu sentias de ti mesmo e a minha sensação de impotência me travou enquanto você se vestia e em seguida o ruído da motocicleta se diluindo aos poucos lá fora, deixou-me num silêncio abissal.

Eu poderia ter dito mais vezes que te amava e só queria o teu bem. Que ainda estaria te esperando quando você voltasse das consultas. Que te lembraria das medicações e poderíamos tornar tudo aquilo apenas um novo hábito nosso. No seu jeito esquentado e orgulhoso, acabaria concordando no fim das contas. Porque era assim que funcionávamos, extraindo o melhor um do outro o máximo que conseguíssemos.

De qualquer forma, também não consegui mais dormir naquela noite. Esperei que amanhecesse para ir até a sua casa, usando a cópia da chave que você me dera (à muito custo), e a única presença no recinto além da minha era um bilhete escrito às pressas e deixada sobre a sua cama.

Ainda se lembra dele? Eu decorei cada palavra, e posso te refrescar a memória também. Tenho ele aqui guardado. Além das nossas fotos que emoldurei para preencher o meu estúdio e os poucos quadros que decidi não vender, aqueles mais íntimos e secretos, o bilhete tornou-se o único pedaço seu que ainda tem o seu cheiro e a sua voz.

Você me escreveu:

“Meu amor, me perdoe por precisar ir embora às pressas. Neste momento não tenho capacidade de te olhar nos olhos, e tampouco me perdoar pelo que fiz. Eu deveria saber que isso aconteceria alguma hora, talvez por isso eu viva com raiva. Essa raiva se estende por todos os cantos do meu corpo e sinto como se ela fosse uma bomba-relógio ao qual preciso diariamente desarmar. Essa raiva acaba com tudo que é bom dentro de mim.

Ainda não me sinto pronto para te contar sobre algumas coisas. Estava me preparando para isso, que fique bem claro. Mas algumas delas eu posso falar. Tive perdas parecidas com o que aconteceu a Ísis e minha memória é uma coisa péssima. Ela fica turva e depois volta para me assombrar.

Sei que você me ama e me vê de uma maneira que nem eu mesmo tenho capacidade de me enxergar. As vezes acho que estou fazendo tudo errado. Que você não merece alguém como eu, tão danificado pelos anos. E você vive me provando o contrário, tentando de todo jeito possível me fazer ver o meu valor.

Quero dizer, tudo isso acabou indo por ladeira abaixo. E não é sua culpa. Também não quero que você esteja por perto quando ainda estou tão acumulado. São pesos que eu jamais partilharia contigo. Porque com você eu só quero partilhar coisas boas.

Esse ano contigo foi o mais tranquilo e esclarecedor que eu já pude ter. Há muito tempo não me sentia assim. Foi como se eu tivesse saído do precipício de um vulcão ao qual convivi por um longo período. Mas agora percebo que voltei a escalá-lo e jamais quis que você fosse machucado por ele também. Não me sinto mais seguro o suficiente para ficar perto de ti. Não confio mais em mim. E me dói dizer isso, você não faz ideia do quanto dói.

Preciso voltar para o ponto de partida e resolver o que decidi ignorar nos últimos anos. Quero que você continue a sua vida e, bem, sei que não posso te mandar fazer nada. Mas é só isso que peço. Te amo muito, inconsolavelmente.

P.S.: Ainda bem que você veio me ajudar naquela noite no estacionamento do parque. Todos os dias eu agradeço por isso.

Sebastian”.

Soube um tempo depois que você apareceu rapidamente pela cidade para vender a oficina, e não me avisou. Eu estava ocupado demais com a nova exposição e fiquei puto da vida contigo, mas passou. Os trigêmeos continuaram trabalhando ali, e Zach se mudou com a menina Ísis para outro lugar. Volta e meia Ian batia na minha porta para que passeasse com ele e os irmãos, sentiam saudades de quando as coisas eram antes. Partilhávamos sobre tudo o que nos fazia lembrar de você. E gradativamente cada um deles foi embora também. Primeiro Lucas, e depois os mais velhos. Fiquei novamente sozinho e aquela constatação não me assustou. Muito pelo contrário, era algo que eu já esperava desde que você sumiu. Acreditando que a solidão me cabia melhor, passei a questionar mais vezes algumas das minhas certezas.

Nove anos, Sebastian. Nove anos em que precisei tomar coragem para te escrever esta carta. Mesmo não sabendo do seu endereço, como você está ou se ainda está neste mundo. Espero muito que esteja. Eu acredito que sim. Sabe quando você tem aquela intuição de que a história ainda não terminou? Eu tenho ela todos os dias. É essa intuição que nos move e nos faz criar. Amanhã irei até o farol abandonado para jogar esta carta ao vento, para que as águas a leiam, para que estas palavras cheguem até você. Também tenho certeza de que irão chegar.

E a gente correndo pela cidade e chegando na rampa e meu coração palpitando até que as corridas terminassem e a menina Ísis comendo pipoca e assistindo filme conosco quando Zach ia fazer seus encontros amorosos e a oficina ensolarada e você demorando no banheiro para chegar de mansinho no estúdio e me encher de cosquinha na barriga e me carregar e me rodopiar e a gente dançando tango na sala e você impaciente para que eu terminasse logo os rascunhos que fazia do seu corpo e das suas tatuagens e a deusa ali com a gente e sempre a gente o tempo todo a gente e só a gente. Só nós dois.

Adoraria que você conhecesse a minha filha. Seu nome é Vênus. Papai a ama, resolvi trazê-lo para morar comigo. Papai tinha andado solitário desde que mamãe resolveu descansar e ele ficou sem ninguém para cuidar. Ele estava aguardando a sua hora de ir também, até que Vênus mudou tudo e lhe deu um novo sopro de esperança. Ele a mima demais, entretanto, prefiro não interferir.

Você acredita? Na terra dos homens, deixaram um cesto de vime na porta de minha casa para que eu pudesse protegê-la dos rumos terríveis que a vida as vezes toma. Mas eu conto para Vênus que ela veio de um parque flutuante nos céus. Pois numa noite de tempestade, a minha criança que estava encharcada e ardendo em pneumonia, sobreviveu. E seu riso agudo é como um sino que me acorda todas as manhãs.

Ela já te conhece pelos quadros e pelos nossos retratos e saberia te encontrar na multidão, assim como o pai. Ela tem os olhos escuros como os seus. Ela é forte como você.

Volte quando puder.

Com amor,

Jonathan.

Andrew Oliveira

27/06/18

00:20

Foto: @cherrymayfair

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