O limbo racial da gay índia e negra

Andrew/Deirdre
4 min readOct 25, 2018
Ilustração: Millôr Fernandes

Há umas semanas, me deparei com o livro O Guia do Cavalheiro Para o Vício e a Virtude, da escritora Mackenzi Lee (Editora Galera Record, 2018). Na capa, um rapaz loiro representando o protagonista da história, o jovem e libertino conde Henry Montague, já me fez chegar a várias conclusões a respeito do que seria a história. Comprei e só muito recentemente parei para ler e o quão grande foi a minha surpresa ao me deparar com um romance inter-racial numa ambientação inglesa no século XIII. Na reta final da obra, a autora faz um breve resumo sobre a cultura Queer nesta época e o que a levou a criar uma história de amor (quase) impossível num contexto como aquele. O meu adolescente interior se divertiu bastante com a narrativa, pois sempre senti muita falta de literaturas corajosas como essa nos meus anos de ensino médio. Principalmente vivendo num lugar como Macapá, onde absolutamente nada de literatura LGBT contemporânea chegava nas livrarias, tendo que comprar a maior parte dos livros pela internet.

Mais ainda, tudo o que consumi (e consumo) desde muito novo de arte LGBT é arte que envolve a vida amorosa da gay branca. Seja em livros, filmes, séries e peças de teatro (salvo raras exceções). Isso repercutiu de muitas maneiras nos meus gostos pessoais, nos personagens que escrevia naquela época e na minha fotografia atual. Foi, também, um processo em que fui me anulando em vários aspectos da minha vida, em como me enxergava, na minha falta de autoestima e na minha certeza de que nunca teria uma vida amorosa. Percebi bastante cedo que eu, um mestiço de pai indígena e mãe negra, não existia em lugar nenhum. Nem na arte, tampouco na vida real.

Nos meus anos acadêmicos cursando Cinema, foi outro longo processo para perceber em como as pessoas me enxergavam. Amigos, colegas e interesses românticos (da minha parte). Quando saí de uma cidade pequena e passei a conhecer mais de perto a ‘comunidade gay’, foi outro momento de mais pura resignação: aqui eu não existo, aqui não sou bem-vindo, aqui não sou desejado.

Internalizando essas certezas, passei a embarcar em todo tipo de situação em que eu me humilhava e me submetia. Tendo acontecido numa relação tóxica cuja pessoa deixou marcas aos quais eu demorei anos para conseguir me libertar, e também em relações casuais onde gays brancos sempre escondiam o fato de que ficaram comigo, envergonhados por terem tocado em alguém abaixo de suas hierarquias, como se o fato, para eles, fosse muito mais humilhante do que era para mim. Estava eu sempre buscando a validação e o respeito de homens brancos que nunca chegavam a mim, porque eles foram ensinados a não me respeitarem e nem me verem como uma pessoa digna de um relacionamento (sequer como uma pessoa), e eu fui ensinado a ser subserviente aos seus desejos e aceitar suas condutas em silêncio. A serpente sempre abocanhando a própria cauda, incansavelmente.

Então de quem é a culpa, minha ou deles?

Lembro-me que até uns dois anos atrás eu ainda pensava desta maneira: é isso o que eu mereço. Me envolvendo na esperança de ter uma relação sólida e saindo aos frangalhos pelos motivos óbvios. As portas seguiam sendo fechadas. Em aplicativos de relacionamento como Grindr e Scruff, raramente era chamado e, quando era, vinha com uma frase de cunho racista logo em seguida. Porque, é claro, o fato de ser de cor já deixa subentendido que tenho pau grande e sou um amante quente nos lençóis.

Contudo, as experiências que tive (casuais e românticas) com gays mestiços como eu, principalmente em Macapá, a maior parte foi agradável e tranquila. Rolando muitos diálogos (políticos, artísticos, filosóficos) e possibilidades. E mesmo assim, esses rapazes também estavam procurando, às suas próprias maneiras, um jeito de simplesmente existirem e resistirem. E isso era algo que eu não interferia, porque entendia suas trajetórias. E entendendo isso, sempre procurei ter LGBTs negros como amigos íntimos para auxiliar e ajudar com base no que já havia aprendido, compartilhando entre eles os meus mecanismos de sobrevivência.

Na comunidade LGBT (que é bem mais LGB do que qualquer coisa), sabemos o quanto que é comandada por homens cis brancos. Eles, ensinados e encorajados a serem donos do mundo, têm a palavra final em tudo. Na militância negra, o LGBT de cor também é muito pouco representado. Então para mim, que sou uma mescla racial de índio e negro, a discussão inexiste, porque não tem. Eu vivo numa espécie de limbo, num lugar-nenhum em que as minhas pautas sequer são conhecidas. As minhas questões são muito distintas das do gay negro por esse motivo, ainda que possamos encontrar similaridades aqui e ali no que se refere a relações amorosas, oportunidades de emprego e lugares e contextos aos quais não somos bem-vindos.

Hoje, calejado pelas circunstâncias, tento entender melhor o meu papel como existência política na minha própria comunidade. Aprendendo a me respeitar e amar minhas particularidades, meus traços e vivências, meus traumas e minhas falhas. Apenas existir não é o bastante para mim, para as coisas que planejo fazer e dizer, escrever e mostrar. É claro que minha vida também não se resume a apenas procurar por uma relação amorosa. Mas para você ver, até mesmo relações amorosas são privilégios. Um dos maiores, por sinal.

Andrew Oliveira

24/10/18

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