Deirdre e o Lobo do Mar

Andrew/Deirdre
9 min readOct 4, 2019

Deirdre e o Lobo do Mar

Vó, tenho um calhamaço incansável de coisas que eu gostaria de te falar. Que eu gostaria que você soubesse. A senhora, que sempre encorajou a minha pulsão de nômade, de cigana, desvelando-me com suas viagens, os lugares aos quais a senhora me mostrou que ainda havia muito mundo para eu conquistar, merece saber da maneira exata, com as palavras que hei de transformar em pura magia.

Conheci um amigo brilhante. Vou chamá-lo aqui de Lobo do Mar, um nome que se atenha à sua natureza, que evoque tanto o seu rosto cheio de ferocidade quanto ao seu espírito repleto de lealdade. Ele, que tem olhos imensos de quem procura as réstias mais ínfimas de vida, os modos brutos e masculinos, a pele vinda de outros oceanos, tão logo buscou nas pequenas valsas que seus gestos e seus manejos dançavam, o meu olhar.

Antes de tudo, gostaria que você soubesse também que a primeira vez que o vi eu vi uma criança, um menino de não mais que dez anos. Que rapidamente, diante de mim, cresceu e prolongou-se pelos anos num curto espaço de tempo. E de menino-homem tão logo se transmutou para a sua forma de Lobo do Mar. Arguto, ferino, selvagem e imperioso. De sarcasmos perversos ditos num tom manhoso a respostas curtas e grossas entonadas na voz de quem, ainda que brevemente, cativa e engrandece.

Resolvi viajar para reencontrá-lo, para que pudéssemos cumprir uma promessa que fizemos meses atrás. E para que, no meio de tudo isso, eu pudesse voltar a me sentir parte importante de mim.

Cheguei em sua toca já me apressando de verdades. Tinha poucos dias ali, perto do mar, perto dele e na companhia de seu amigo, um lugar que escolhi para também me despedir de você, vó. Planejei tudo direitinho como mamãe e papai me ensinaram. Consequentemente, apresentar-me já com verdades não foi difícil de se executar. Contudo, precisei me acostumar rapidamente com a ideia de que, também, a maior parte dos planejamentos em questão ou seriam postos em prova, ou teriam de ser mudados. O emaranhado já começou ali.

Difícil vó, em tudo houve um pouco de dificuldade, como eu imaginei que haveria. Pois tudo o que faço e decido são constantes desafios de reestruturação de minha existência. A senhora sabe que, segundo o meu costume, há uma força enigmática que me faz profetizar a minha própria vida nas coisas que escrevo.

O Lobo do Mar também é o nome de uma deidade que criei alguns anos atrás. Assim como outras entidades de meus universos, inspiradas em mitologias, em sonhos, em processos de Ayahuasca. O Grande Lobo que caminha por uma praia vazia e bucólica, de pelos cristalinos que refletem quem se atreve a olhar para ele. O Grande Lobo também assume a forma de um menino ou de um homem, dependendo das intenções de quem o vê.

Tudo o que era a respeito de alguém que eu só conheceria depois de um espaço de mais uns anos.

Eu, com meus gestos de cigana e minha lábia solta e bruta, lhe revelei ali de frente para o mar que éramos amigos de outras épocas, de outras vidas, e que ele havia me sido de profunda ajuda em uma delas. A vida que mais penei, e não foram poucas, mas foi a vida de Deirdre.

Então eis o que eu fiz, vó, assumindo-me Deirdre numa pele completamente nova, firme o suficiente para perdurar naquela próxima etapa. Depois de ter contado todas essas coisas tão especiais para ele, que me respondia com um olhar onde reconheci as marcas de uma vida sem serenidades. Em tudo as coisas e as circunstâncias lhe foram fulminantes, violentas, mortais. “Eu já sofri muito” — ele me disse baixinho no nosso último dia juntos, mas isso sou eu adiantando as coisas.

Intuindo o que a senhora já havia me ensinado a praticar, assumi a responsabilidade de lhe doar algo muitíssimo especial que ele ainda não havia sentido naquele lugar, naquele contexto e com aquelas pessoas. Pelo menos, não da maneira especial que eu faço, não no mesmo modo e na mesma partitura. Tomando a licença pretensiosa de quem escreve: ninguém faz da maneira que eu faço. E eu, que desde pequena sempre fiz o contrário do que me ordenavam, resolvi lhe dar a minha mais sincera aceitação.

Ao lhe comunicar de minhas paixões. Da importância contínua e exuberante do meu carinho, meu afeto sem filtros, reelaborei em mim — ainda que sentindo a dor constante da sua partida, vó — um modo de rotina, de cotidiano em que, em cada mínimo, ínfimo detalhe, houvesse uma consistência indubitável do meu amor.

“Vou te fazer um café antes de ir para o trabalho”.

“Cê acha que dá tempo?”

“É claro que dá. Vai logo tomar seu banho”.

E fazia. E lhe pedia os abraços e os beijos matinais que eu tanto dou relevância e poesia. Ele com a cara toda amarrotada de sono e travesseiro, descamisado, uma nuvenzinha enfezada, sabia — creio eu — que os meus meros pedidos, ao meu erguer de braços, eram essenciais para que os nossos dias, indistintos e tempestuosos, funcionassem.

Eu, que me prolongava nas paisagens nordestinas fazendo performances de arte e as registrando em vídeo, meu próprio cinema particular, encarnando o papel da antagonista do meu livro: a Sombra ali nos rochedos, no recôncavo, querendo ser qualquer coisa que não ela mesma, já que ser ela lhe demandava muita energia, muito esforço, e um peito sempre aberto a receber aquilo que era de seu merecimento. Volta e meia sendo velada por estrangeiros curiosos que paravam para assistir e querendo saber quem era aquela criatura toda coberta de tecidos escuros que se ondulavam durante ventos fortes como um ser desprovido de ossos erigindo-se sobre os rochedos. Enquanto o Lobo prolongava o seu dia no seu trabalho, algo que não tinha relação alguma com sua pulsão de arte que era a mesma que a minha, mas essencial para o seu sustento. Para que ele prosseguisse pelos meses seguintes naquela sua aventurança de ter se mudado, abruptamente, para aquela ponta indecifrável do mundo onde eu, de bom grado, resolvi desbravar também.

É assim, eu acho, que é a imagem de uma promessa que se cumpre.

Ele chegava exaurido e eu idem. Mas eu já tinha feito o jantar para ele, para mim e para o seu amigo que ali dançava sua presença constante e ritmada de quem observa, de quem apoia, de quem torce positivamente por. E tendo feito todas as minhas pequenas missões no decorrer de cada dia, somente o aguardava chegar para que seu calor voltasse a reconhecer o meu. Eu deitada sobre o seu peitoral que inspirava lenta e pausadamente, e ele escutando atentamente as minhas opiniões a respeito das artes todas, as benévolas e as malditas.

As vezes o tomava de assalto na cozinha, lhe declamava uma poesia portentosa, lúgubre e dolorida. Era mais um aspecto que eu achava importantíssimo tecer à nossa rotina. E com um olhar maroto e um sorriso danado ele retribuía.

A senhora sabe como esses homens são, vó. Assumem o papel de fugidios, mas no fundo buscam a mesma serenidade que a gente. Era o que eu percebia quando lhe desafiava a me escutar, e escutar as camadas mais extensas que eu dilatava do meu ser e moldava em forma de versos com cheiro, extensão e geometria sentimentalizada.

Então fazíamos essa elucidação catártica de quem, naquele momento, éramos um para o outro, e logo éramos também para o mundo, já que este segundo, temperamental e obscuro, volta e meia vinha com suas marés altas e suas notícias pouco otimistas.

Vó, estes dias se transformaram numa vida inteira. Vivi sete anos em sete dias, ou coisa parecida, sabe? Então eu vou assumir essa metáfora de tempo e compressão de espaço e dizer que, depois de seis anos e alguns meses, no sétimo ano e próximo de nossa despedida, eu o preparei para a minha próxima obra de arte.

Sentamo-nos um de frente para o outro para iniciarmos um novo processo de imersão. Algo que eu havia visto e sentido num sonho, e que era importante que fosse sustentado para a realidade daquela rotina nossa. Ele, com a mão espalmada sobre o meu peito, de olhos fechados respondia às minhas perguntas ao passo que eu com a minha mão espalmada sobre o seu peito, queria saber de suas infâncias, as primeiras. De suas felicidades e tristezas, as mais antigas. Pois se ele era o Lobo do Mar que assumia a forma de homem ou de menino, eu era Deirdre e Mariarosa, alter ego dela mesma, compactada dentro de si para que se expressasse com eficiência e sabedoria.

Ele, que já tinha o modo genuíno de quem gostava de se exibir, fazia pecinhas teatrais. Chamava a todos da família para prestigiá-lo na sua mais nova peça. A vó, a mãe, a irmãzinha e o tio que já tinha se despedido (as mortes também chegaram até ele).

Contei-lhe de mim, de minha dualidade, das minhas perdas também, e do medo constante que eu sentia de perder os meus próprios contornos. Lhe revelei a Sombra e suas características principais para que ele compreendesse o personagem que encarnaria no dia seguinte e penúltimo nosso: o menino Frey. Meu filho mais antigo, já naquela época vivendo próximo do mar com sua irmãzinha Freya. Metáfora de luz e escuridão, o motivo maior, o âmago daquela energia que se movia, que se autoalimentava na forma de livro, de tinta e cinema.

Freya, nome nórdico, de deusa do amor, está sempre por trás de tudo. Está nas casas externas e internas. Está nas guerras também.

Eu faço uma troca que considero justa, coloco os deuses em condições humanas, em retorno, os deuses me revelam os nomes de deuses ainda mais ocultos. Foi assim que conheci a Senhora Despedida, a Deusa Concha e a Filha Maior. As Três irmãs que regem o livro da vida de menino Frey.

Pintei as costas do Lobo do Mar, vó, no alto de uma colina, e o chiado das ondas sempre presente, tal como a companhia constante dos ventos salinizados. Já era de tardinha quando ele se sentou de costas para mim e eu o transformei num quadro, só porque ele deixou. Ramificações profundas da Sombra em sua alma. As cicatrizes de tantos anos de uma vida inteira sendo açoitado.

Frey, irmão mais velho de Freya, regido pela Deusa Concha que é a protetora dos mares, em extensa conexão com a Filha Maior, a deusa-general, irrompia-se para além do Lobo e do menino, emaranhava-se de tal maneira que mesmo o Lobo que lhe emprestava o corpo já havia se resignado a recebê-lo em sua totalidade. Abençoado assim pelas três deusas no lugar que decidi que seria a Praia de Pérola — terra natal de Frey, lugar de origem de tudo o que fosse matriarcal. Decidindo que naquele momento eu me encontrava, junto ao Lobo, dentro do meu próprio livro, daí então concretizando mais uma profecia.

E eu gravei tudo, vó. A senhora ficaria orgulhosa de ver. Tudo mesmo. Gravei os modos da Sombra fugidia para o mar. E gravei Frey que tentava a todo custo escapar para o mar também, ainda que o vento forte e as ondas violentas o assustasse.

Ele tinha que enfrentar esse medo, antigo e obtuso, e tornar-se o próprio mar. E cumprida a última promessa, Frey voltou para as páginas do livro e o Lobo ressurgiu dentro de si mesmo para que nos abraçássemos. Assim, fizemos uma nova promessa de reencontro, no novo lugar de sua futura migração. Pois com minha audácia de cigana, me garanto que irei cumprir — e ele sabe disso, e a senhora também sabe.

Não consigo dimensionar o tamanho da saudade que sinto de ti, minha vó Olívia, e que sinto dele. Mas estive tentando. Juro para você. É claro que não é a mesma saudade, mas pertence ao mesmo mundo, vem do mesmo coração. E num misto de felicidades e tristezas que se emaranhavam num embolado dificílimo de se desembaraçar, agora era eu quem me despedia para voltar. Depois de sete dias ao seu lado que no fundo no fundo foram sete anos de uma latência tamanha que, ao voltar, despedaçou-me a constatação do luto e da regeneração que uma amizade me proporcionou.

Eu, que passei tantos anos assumindo o papel da Sombra, me tornei alguém que tem a capacidade de iluminar outra pessoa.

Fico por aqui, ainda estou em pedaços, tentando a todo custo não me dissipar novamente, para que eu enfrente a dor em sua clareza abissal. Quanto à senhora, sei que vai me ouvir pelo resto da minha vida, onde quer que você esteja. Velha e antiga e solícita, tal como a Senhora Despedida.

Obrigada por me ensinar como se ama.

Andrew Oliveira

29/09/19

Chamado da Floresta — Voo do Beija-Flor.

Arte de Mariarosa: @deirdremayfair

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