Carta Para os Dias Maiores

Andrew/Deirdre
9 min readApr 18, 2019

Você chega como uma pessoa que refresca os meus dias, mostra-se e exibe-se como a exceção que você é. Eu acredito e confio. Por que haveria de não acreditar? Não me importo de criar o vínculo, afinal, você é alguém que chega e que dá todos os sinais de que está disposto a desenvolver essa relação — ou essa “alguma coisa sem nome” — que temos. Ainda vou chegar lá.

Você é essencialmente bom porque conhece as artes, as músicas, os filmes, as obras, os livros, as referências. Entende as minhas. Trocamos ideias, energias, opiniões. Sua história é cheia de atribulações e eu passo a conhecê-la pouco a pouco, assim como te confesso detalhes da minha. Essa vida torta que, a muito custo e muita dor, desentortei. Porque queremos nos conhecer, porque estamos interessados em nos conhecer. Logo, nos abrimos um para o outro, mostramo-nos as sementes no âmago da polpa. Como quem prova, como quem se alimenta, como quem se inspira, como quem se nutre.

É energético, é bonito. Eu passo a conhecer mais de mim, “alguém que eu mereço ter do meu lado”, penso. “Alguém que eu posso contar, que eu posso explicar onde me encontro nos mecanismos sistêmicos deste mundo”, penso também. Pois a minha pele tem melanina, tem cor e tem história. A sua, tem outro contexto, outra origem, outro sangue. E ao te contar e tentar te explicar, cometo o que na época eu não via como erro, mas como entrega: eu te mostrei minha vulnerabilidade e, atrelada a ela, o contexto racial em que me encontro.

Eu também escrevo muitas coisas ao meu respeito, faço reflexões e as publico, faço contos inspirados em pessoas que conheci, que eu quero conhecer, e que eu hei de conhecer. A minha escrita é sagrada não porque é única ou mais especial que as outras escritas, mas porque ela detém os segredos dos caminhos por onde eu devo seguir. Ao descobrir essas matas, ao me deparar com um rio que entrecorta uma trilha ladeada de pedras limosas, eu encontrei alguém que apreciava as minhas criações. Não que outras pessoas especiais não apreciem do jeito delas, só que você apreciava do seu jeito único. E isso era essencial. Era isso o que me encantava, os elogios certeiros, as referências proclamadas, o segundo rio distante, que não se encontrava com o meu, que somente me assistia de longe.

A distância, então, era um ponto a ser questionado. “O tempo”, você dizia, “a falta dele acontece”, você justificava. “Prometo, assim, que isso passar”, foi dito algumas vezes, assim como algumas outras promessas. Eu entendia. Eu lhe dava o benefício da dúvida por uma escolha minha. Se eu seguisse o meu instinto, teria acabado com essa história meses antes, na primeira vez em que fui tratado com sua condescendência caucasiana. Não falei sobre porque precisava saber até onde você entendia a respeito disso. Então me silenciei — também — por uma escolha minha. O que importava era que vivíamos num globo de neve. Você, uma cidadezinha gelada em um canto, e eu, o bonequinho, no outro canto. Norte e sul no mesmo globo.

“O que eu esperava? Um pouco de aconchego numa época em que tem sido a pior da minha vida” — você me disse certa vez, no dia em que questionei suas narrativas brancas, suas justificativas, os meses que se passaram, todas as explicações mais profundas apenas para não dizer que você não queria aquela relação. Não, não queria. Se quisesse, as coisas mudariam, se quisesse, todos aqueles planos que fizemos durante meses, pelo menos algum deles iria começar. Não precisava ser tudo, afinal era muita coisa. Apenas um era o suficiente. Ou o começo de um. Cheguei num ponto em que eu queria provas. Em que eu mesmo me perguntei por que eu continuava nesta ampola de vidro. Nessa pseudo-relação que criamos onde, a qualquer mínimo barulho de questionamento, você chegava e bradava “você definitivamente não me conhece” — mesmo depois de costurar meses contando boa parte da sua trajetória para mim, das pessoas que te feriram, daquelas que você perdeu, da doença na sua cabeça, do vazio em seu peito, dos pensamentos de morte. Então, se eu não conheci ao menos um pouco ao seu respeito, quem eu estava conhecendo durante todo aquele tempo?

De quem era essa história e essa pessoa que você me falava tanto?

Eu me nivelava por baixo, sem perceber, acatava, pela comodidade de que eu havia encontrado alguém que parecia disposto a construir algo grande comigo. Planos de carreira, arte, música, livros. “É um sacrifício que vale a pena”, eu pensava. “Eu posso cuidar dele, eu posso resolver isso, eu posso fazer a minha parte”. E você, dando sinais e palavras de que queria — ainda que não quisesse –, alimentava a minha esperança de que lá na frente, em um futuro ou coisa parecida, seríamos o que planejávamos ser. Acontece que esse momento nunca chegava, as coisas não mudavam, você nunca aceitou a ajuda que eu tinha para oferecer, continuávamos neste porão em que você descia segurando um castiçal de velas para me contar um pouco da sua história, e quando eu fazia o mesmo, quando eu te contava que você teria que entender que entre nós havia um abismo racial que nos separava e que, de muitas maneiras eu precisava sempre questionar pessoas brancas, você se retirava. Não aceitava.

“Mas a minha história é essa”, você dizia. “O meu passado é esse”, você confrontava. “Eu tenho caráter”, você justificava. Depois de todas as vezes e todos os meses em que tentei te explicar, voltávamos exatamente ao ponto onde você era a vítima e eu era transformado no negro instável que acha racismo onde não tem. A sua condescendência caucasiana foi piorando. E os mecanismos de manipulação tornaram-se mais ágeis. Tudo voltava a ser sobre você, a sua história, o seu passado, a sua família, a sua dor, a pior época da sua vida, a sua pretensão em achar que você sabia mais deste assunto do que eu. Um assunto que, diferente de tudo o que você vive, tem relação com a minha própria existência: a raça.

Eu acabava me compadecendo. Seguia me nivelando por baixo porque, pra falar bem a verdade, eu estava numa frequência vibratória parecida com a sua. Porque me punha num lugar de submissão, de falta de autoestima, de valor próprio. E por me torturar daquele jeito, eu continuava com você, porque você fazia o mesmo, de outras maneiras, obviamente, mas todas essas pequenas trilhas de autoflagelo só chegam a um único lugar. Não importa o quão distintas sejam. Uma hora ou outra, se continuamos indo por ali, nos perdemos. É um lugar escuro demais ao qual constantemente nos arriscamos a ir, pelo nosso próprio livre arbítrio, pelas doenças da alma, do corpo, do cansaço.

O universo ensina há milênios, a gente só recebe aquilo que aceita, a gente só conhece quem está na mesma sintonia que a nossa. Então quanto a isso, eu sou responsável. Eu me responsabilizo por ter deixado essa relação continuar. Mas eu não tenho nenhuma culpa no modo como você me tratava, as vezes sem perceber. Eu nunca soube diferenciar a linha do proposital e do inconsciente, quando o assunto era você, nessa pessoa que eu definitivamente não conhecia, como você deixara bastante claro numas duas ocasiões. E ali estava eu, acreditando que nunca mais permitiria que mais um garoto caucasiano me manipulasse, deixando a história se repetir.

Eu permitia inconscientemente essa manipulação porque eu mesmo me manipulava para acreditar que o tal futuro, esse fulano de tal cheio de possibilidades mais frágeis do que a pluma de um pássaro, chegaria. Contudo, eu já havia jogado para o universo desde a primeira vez em que consagrei ayahuasca, uns dois anos atrás: eu quero chegar na verdade, eu quero viver na verdade, eu estou cansado de mentir para mim e me enganar com o meu próprio ego. E o universo, os deuses e meus mestres, meus guias e mentores, responderam ao meu pedido. Se você quer a verdade, então você vai tê-la.

O que tive de descobrir então ao meu respeito, nessa história toda? Que verdade é essa que eu tinha tanta urgência de saber?

Eu me nivelava por baixo porque eu aceitava migalhas de atenção. Porque acreditava nas exceções. A minha esperança era fragilizada pela validação de outra pessoa, não pela minha própria. Eu aceitava o racismo de garotos brancos por quem eu me interessava porque acreditava que poderia, de algum modo, de algum jeito, fazer a parte deles também. Melhorá-los, talvez, pensando arrogantemente de que eu seria esse todo-especial na vida de alguém. Um mestre ou coisa parecida. Eu não sou especial para o mundo, a minha escrita não é especial, a minha arte não é especial, nada do que eu faço é especial. O que eu faço muita gente também faz, a diferença é que eu faço do meu próprio jeito, nos meus próprios termos. Eu sou apenas alguém que, incomodado e frustrado de viver em tantos autoenganos e mecanismos psicológicos de tortura, decidiu que não queria mais viver desta maneira. E ao me recusar, ao começar a cuidar do meu espírito quebrado e pisoteado, descobri que sou especial apenas para mim, e que a validação que eu tanto necessitava quando vinha de ti, não era verdadeira. Era frágil, era mais um engano, mais uma mentira que eu contava para mim.

Como pode uma pessoa valorizar a outra se ela nem mesma se valoriza? Como pode uma pessoa querer aceitar a ajuda de outra se ela nem mesma se ajuda? As frases mais simples são as mais certeiras. Há muita sabedoria na simplicidade, ainda que a maior parte das pessoas torçam o nariz para ela. Preferem as espirais profundas e complexas de suas próprias ilusões, repletas de ramificações para criarem mais e mais motivos que possam distanciá-las de si mesmas.

O universo ensina há milênios, a gente que é bobo de não escutá-lo.

Eu não te culpo por ser racista, igual a você tem vários. Pessoas brancas são racistas porque são brancas. Essa não é uma constatação para se condenar, mas para que possamos abrir espaço à autocrítica. Sem ela, a autocrítica, os discursos tornam-se frágeis, pouco convincentes. Em maior ou menor escala de racismo, o racismo continua sendo racismo. Eu não te culpo nem mesmo por não me escutar, por criar narrativas brancas manipulatórias que me colocavam num território de pessoa irracional que não sabia do que estava falando. Eu apenas me responsabilizo por mim, por eu ter deixado você fazer isso comigo. Por eu ter permitido que alguém me machucasse em doses homeopáticas. Usando de maneira nociva a sua própria dor para justificar os racismos que você mesmo proclamava, e proclamou até a última discussão.

Por fim cheguei de mais um ritual, recém-amparado pela Águia Sagrada, meu animal de poder, com seu voo longo e seu olhar que observa o todo, das montanhas ao leste às matas do norte, não percebi de primeira instância a maior parte das coisas que escrevi nesta nova carta, mas eu sabia que alguém teria que mudar alguma coisa. E se eu estou em busca da verdade, do respeito e do amor próprio, eu precisava provar para mim, naquele momento, que eu sabia me respeitar e me amar.

As provas cabais que eu tanto procurava, eu as encontrei todas respirando dentro de mim. E foi assustador perceber que eu precisava me afastar de uma pessoa ao qual eu, conjuntamente com ela tinha feito tantos planos, tantas possibilidades, tantas coisas grandiosas para esse tal futuro que nunca chegava. E abdicar disso doeu, e me afastar disso doeu. Porque eu queria, mas apenas querer não adianta.

Não há vítimas aqui. Já tem um tempo que eu não me considero uma. E esta não é uma carta de exposição ou denúncia. São apenas palavras que buscam a verdade. Depois de um mês inteiro pensando de que forma eu escreveria isso, precisei ter paciência para encontrar um resultado. A busca pela dignidade, afinal, precisa do seu próprio tempo para ser semeada.

Eu comecei o ano com uma tristeza profunda que eu não sabia de onde vinha. Se era uma tristeza minha ou se era do mundo. Aparentemente, não havia motivos para essa tristeza existir. Avassaladora como um tornado que veio e levou minha casa embora. Chorava todos os dias sem saber o porquê. Meu corpo expressava, minhas lágrimas caíam, meus dedos tremiam e por um cruel momento de minhas próprias ilusões eu acreditei que nunca mais conseguiria escrever e me aperfeiçoar como fiz no ano anterior. Que eu não conseguiria ser a pessoa boa que eu almejava ser.

É tão profundamente belo e encantador o quanto eu aprendi no espaço imbatível de um ano. Essa é a minha maneira de encontrar dignidade nessa nossa história — mesmo em momentos em que não havia nenhuma. Mas isso não importa agora. Não sinto mais necessidade de me despedir.

Eu prefiro a saudade nua e crua que sinto nesse momento do que continuar repetindo uma lição que eu já aprendi.

Andrew Oliveira

10/04/19

Photo: @cherrymayfair

--

--