Carta Para o Ausente

Andrew/Deirdre
4 min readJun 11, 2020

Talvez eu não esteja apto a participar do seu mundo.

O mundo como participei dele, por um momento, me fez atribuir uma importância. Me disseram também os espíritos, os ancestrais, os guias, os mentores: logo vocês se reencontrarão, logo estarão juntos.

E por fim a ausência. Esta que desliza feito mel de abelha sobre uma textura mais exata. Um silêncio sem fim. As mensagens não respondidas. Aquela banalidade de todos os dias, pequenas carências supridas com frases do tipo deixa pra lá, ele só tá vivendo a vida dele, não retira a importância que você tem em sua vida. Mas então tudo parece se repetir, se torna um hábito. Fico sem entender, tento deixar pra lá, mas não consigo.

Pouco tempo atrás nos incendiamos de positivas possibilidades, mudanças, reencontros, um mar do que poderia ser uma promessa, quem sabe, pode ser que. Mas vamos planejar com calma, se vamos viver juntos, vamos pensar duas vezes antes de agir. Aquiescemos, nos concordamos, as coisas se estabeleceram. Aí está a importância, a prova cabal do amor incondicional. Te amo mesmo de qualquer maneira, até quando você nem faz ideia. E o amor é este, estou nem aí se você o aceita ou não. Ele não te pertence e tampouco me pertence, ele prescinde da gente, é tamanho céu aberto rabiscado por um crepúsculo de deflagrações.

E você é assim. As vezes parece aceitar, as vezes parece estar bem com a ideia do amor em si existir. E me responde. Não agora. Respondeu. Houve um espaço amplo, um apartamento vazio e sem fundo no qual eu me encontro agora, sem entender por que não houve uma cronologia, um caminho exato, uma firmeza. Sei lá.

Com você é tudo na base do sei lá, do pode ser, do eu acho que sim. Ainda que, contrariando todas as suas dúvidas, você mesmo tome decisões abruptas e — sinceramente falando — insensatas. Mas tá aí uma coisa que eu admiro, a postura guerrilheira. Eu gosto da imprevisibilidade, a admiro nos outros porque por um longo tempo eu era quem tomava a decisão abrupta de me extirpar de uma pátria e partir para outra. Nunca fui expatriado, mas também nunca achei que pertencesse a algum lugar.

Mas então e agora? Eu pergunto, não sei se pra você ou para mim. Uma carta escrita para o destino do lugar nenhum. Até agora fiquei sem entender. Se os planos mudaram, se as suas decisões se tornaram outras, por que não tive o privilégio de ser comunicado? Alguma coisa faltou? Falei algo de errado? Te assustei?

Eu não vou cobrar respostas porque só se responde a quem se atribui a importância de uma satisfação. Mas eu não sou joguete do destino que fica esperando a boa vontade de um esclarecimento. Ninguém é obrigado a fazer nada, mas nesse ninguém é obrigado se nasce um mar de indiferença. E eu não sou indiferente às coisas, eu sou feito de excessos que me fazem pensar na brutalidade catártica de tudo que sinto, penso, faço e imagino. É assim que nascem as minhas criações, os deuses que eu invento, ou que estiveram sempre ali.

Não é como se o meu amor tivesse mudado. Ele vai estar sempre ali, imutável, imaculado, circunspecto em si mesmo, bastando-se, arrojado, estoico, na mesma postura de quem decidiu amar só porque quis. Nem precisava de grandes motivos, inteligência tamanha ou intelecto exacerbado, artes, talentos, gostos musicais, audiovisuais e sei lá mais o quê. Pouco me importa essa parafernália sinestésica quando tudo o que sinto vai além da parede firme de uma muralha. Estende-se por conta própria e não só na superfície, o meu amor constrói uma civilização inteira oculta e abaixo de uma ilha. Pode me chamar de Atlântida.

Mas sinto falta. De você ou da gente. Ou de como estávamos. Eu fiz alguma coisa? Não me pareceu importante perguntar, porque não te pareceu importante me dizer das tuas novas decisões. E não falo isso como se fosse arauto do aqui se faz aqui se paga, eu mal tenho tempo pra rancores ou ressentimentos, o passado que existe no lado escuro da lua é sempre mais importante para lidar do que essas pequenezas. E minhas prioridades sempre falam mais alto.

Então só posso dizer que sinto falta, e que estou cansado de esperar, e que não me faz bem esperar. Não vou dizer que não fiquei magoado, emudecido com a falta de tato.

Quem sabe o mundo, depois que sair de sua enfermidade, volte ao eixo aonde o caos se manifesta como palavra bem ordenada, ao invés de voluntariosa expectativa do até quando ficaremos presos em casa.

Enquanto isso, só posso te desejar o mesmo amor que sigo sentindo, e que nem você e tampouco eu temos a capacidade de emudecer. Ele paira acima de qualquer coisa, é maior do que qualquer humanidade nossa, ou a falta dela.

Por hoje é só.

Deirdre

11/06/20

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