Carta para Lorna Helgardh

Andrew/Deirdre
5 min readJun 6, 2019

Escrever um romance é mais do que uma tarefa cheia de preocupações técnicas, construção de personagens e o fio narrativo que moverá a história para frente (ou para trás, como também é o caso aqui). Escrever um romance é saber abrir mão da maior parte das coisas que estão acontecendo na sua cabeça para dar o espaço apropriado a esse universo que, de muitas maneiras — e por muitos motivos — você quer dar vida e forma e apresentá-lo ao mundo como ele merece ser apresentado.

Não é também meramente um parto, ainda que uma boa parcela de escritores e escritoras tenham essa relação maternal para com seus livros. Mas além do ato de “parir”, precisa-se se preparar para o ato seguinte: o de lidar com este ser vivo que está conversando com você. Que está te exigindo tempo, aprendizado, e que está tentando te ensinar a olhar para si. É necessário abrir mão do seu ego e das suas tantas pequenezas para que sua personagem principal fale, respire, se mova e te convide a mover-se junto com ela na história.

Particularmente, eu sou da opinião de que qualquer autor ou autora que não tenha uma relação humana, empática com seus personagens, estará fadado a criar meros bonequinhos narrativos e automatizados que não nos cativarão tanto assim. Que poderão até nos contar uma boa história, mas que sempre haverá uma parede de vidro invisível entre leitor e personagem que impedirá o primeiro de se aproximar do segundo com mais intimidade. E isso, ao meu ver, já retira uma imensa preciosidade que aquela literatura poderia nos oferecer.

Felizmente, esse não é o caso de Asas Escuras, obra da autônoma Yueh Fernandes que, como a mesma disse, passou dois anos trabalhando em seu livro para nos dar uma bela recompensa: a trajetória de Lorna, uma ceifadora que coleta almas para a Empresa Helgardh & CO, num universo alegórico e hostil onde a morte é apenas mais uma forma de lucro (e que nos dá a constante sensação de que estamos lendo uma bela receita para se eclodir um apocalipse).

Sem me atentar demais à narrativa principal da história, vim aqui mesmo para falar de Lorna, nossa protagonista com pitadas de mártir e repleta de referências aos imortais atormentados de Anne Rice. Com uma impulsividade autoindulgente que ela mesma, nos seus séculos de existência, conhece tão bem. E nós, que ainda estamos a conhecendo, ficamos absortos nas certezas tão claras — que beiram à crueldade — que ela tem sobre si mesma.

Lorna carrega um mundo de culpas nas costas. Lida com a própria imortalidade de maneira repulsiva e cheia de autossabotagens. Por vezes você fica confuso se ela está pensando algumas coisas a respeito de si mesma porque não consegue se aceitar, ou porque aceita seus demônios internos tão bem que resolve dançar com estes. Bailando constantemente num salão cheio deles, dentro de sua cabeça.

Criar um personagem secular não é tarefa fácil, principalmente quando passamos por uma época cheia de vampiros e bruxas e outros seres em séries televisivas, livros e filmes, que alegavam ter séculos de vida, e ainda agir como aborrecidos adolescentes.

O mais interessante na imortalidade de Lorna é acompanhar todas as suas dicotomias. Ela ensaia uma moça da mesma idade que seu namorado mortal, Timotei, para que ele consiga absorver a ideia de que ela talvez possa ser humana, mas a autora faz questão de nos mostrar que, mesmo num momento de contemplação numa praça da desconcertante Nova Estrasburgo, estamos acompanhando uma velha senhora, nostálgica pelas perdas, potencialmente ressentida e tentando lidar com o fato de que não há mais nada de novo para se ver naquele mundo.

É depressivo, é amargo, e é lindo. Porque são nesses momentos, certeiros e poéticos, que somos lembrados de que estamos assistindo as pulsões de uma ceifadora. Ela, que caminha pela noite — aqui tão bem representada em suas várias sinestesias — para trabalhar no seu ofício de coletora (uma mera funcionária num mundo cheio de deuses da morte ambiciosos e pragmáticos), precisa lidar com o fato de que em si existe sentimentos extremamente humanos num corpo que não pertence mais a esta espécie.

As noites em que Lorna sai para trabalhar também alcançam um espectro quase palpável. A “Noite”, por si só, é um importante personagem e condutor narrativo para que possamos refletir sobre as entranhas emocionais de Lorna. A noite é Lorna e Lorna é a noite. Passeando pelos abismos da depressão, da ansiedade, das cobranças brutais que temos de nós mesmos e, de maneira sensível e respeitosa, do suicídio. Este último que é retratado nas mídias de maneira tão melodramática e fetichizada, explícita e humilhante, em Asas Escuras o suicídio é abordado com a delicadeza que merece ser abordado. Sem floreios ou brutalidade, apenas as coisas como elas são. E num romance de fantasia neo-gótica como este, a reflexão a respeito deste assunto alcança uma potência máxima que ultrapassa o mero efeito das metáforas e das simbologias: torna-se o cerne de sua mitologia e galga os degraus mais profundos de nossas próprias sombras.

Lorna conversa conosco num nível espiritual com dignidade e coragem. Diz-se que o espírito é imortal, que temos memórias de outras vidas — ainda que de maneira inconsciente –, que muitas das pessoas que conhecemos e amamos ou odiamos, já amamos e odiamos em outras encarnações também. E que a cada nova encarnação, a cada novo retorno à terra, temos sempre uma nova chance de fazer melhor, de evoluir, de nos entendermos e de compreender o valor da nossa essência. Uma personagem como Lorna é um reflexo do nosso espírito porque, por mais que tenhamos séculos de existência no plano astral, ainda temos um longo caminho pela frente para entendermos quem verdadeiramente somos.

Criar uma personagem principal que diga tanto ao nosso respeito é não apenas um brinde à boa literatura nacional. À fantasia com seus mecanismos de poder tão bem manuseados. Mas é, também, um gesto de amor. Por eu me ver em Lorna, eu atravesso a linha da ficção e consigo dizer que ela, essa ceifadora, tornou-se uma grande amiga minha durante o tempo que li Asas Escuras e o vazio que chega após terminar a leitura. E ao querer abraçá-la, dizer para ela que há grande humanidade em seu coração, eu consigo reconhecer que não perdi nenhum aspecto da minha, apesar de todas as atribulações que a vida por vezes coloca para me desafiar.

E ainda bem que ela faz isso, a vida. Se não o fizesse, eu não saberia apreciar e absorver completamente o que aprendi na trajetória de Lorna, e na minha também.

Andrew Oliveira

06/06/19

02:57 AM

Photo: @cherrymayfair

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