A Ética Literária

Andrew/Deirdre
5 min readNov 26, 2018
Foto: EVAN AGOSTINI/INVISION/AP/REX/SHUTTERSTOCK

Quando você cria uma história, romance, conto, saga de livros, existe (ou deve existir) uma postura ética entre você e os personagens que você cria. Porque aquilo que você testemunhou, a partir do momento em que você apresenta ao mundo, não é mais apenas seu. A história pertence, também e principalmente, aos seus leitores. Sendo assim, essa ética, esse respeito, se estende dos seus personagens até os seus leitores. É quase como se fosse criada, no momento da leitura, uma sociedade e, como tal, nessa sociedade há cultura, política, leis e história. Há uma conexão, nutrida e expandida. Porque eles, os que consomem, os que se apaixonam pelos seus personagens, os que crescem lendo suas histórias, também se sentem moralmente agredidos quando essa postura entre autor e personagem, criador e criação, é deixada de lado. Ou, falando de modo mais claro, quando você inventa galhofa na sua própria obra — mesmo depois que ela já foi impressa, lançada, e tem mais de duas décadas de existência.

Harry Potter e a Pedra Filosofal, da J. K. Rowling (Editora Rocco, 2000) foi o primeiro livro que ganhei de presente de aniversário. Tornou-se algo sagrado, simbólico na minha vida. Tanto por, naquela época, já escrever, quanto por ser um ávido leitor de tudo. Fiz parte da criançada que acompanhava o lançamento dos livros e dos filmes nos cinemas. O lançamento do último filme aconteceu na flor dos meus dezesseis anos e um ano antes de eu me mudar da minha cidade natal. Foi uma sensação de despedida a um antigo eu e de iniciação a uma nova fase da vida: a faculdade. E acredito que, não apenas eu, mas muitas pessoas também tiveram em Harry Potter um exemplo de crescimento e de aventuranças na vida adulta que chegava. E foi bom, e me deu forças e inspirações, e volta e meia eu me lembrava de algum acontecimento dos livros e o que refletia naquela época a respeito do que eu lia. J.K. Rowling, afinal, era uma professora para mim.

Todo escritor sabe que, para você saber escrever bem, é necessário se interessar por tudo, saber sobre tudo, questionar tudo que existe e vive ao seu redor, saber os nomes das coisas, conhecer outras histórias e vidas, ter experiências, empenhar-se, procurar palavras novas, metáforas inéditas, exercitar figuras de linguagem e, por fim, dar forma e personalidade ao que você sente vontade de criar. E feito isso, é necessário saber delimitar regras para o universo que você dá vida, é preciso ter discernimento dos limites, da coesão, dar ordem ao caos. Escrever é como construir uma casa no meio do nada. Você precisa de um desenho, de uma planta, de estrutura, materiais, planejamento. E construída a casa, você precisa saber onde quer deixar os móveis, com quais tintas você pintará a sala e os quartos, como você vai organizar a cozinha, o depósito. Quais plantas fará crescer no quintal. Quantas pessoas irão morar nesta casa. E não acaba por aí, porque depois de tudo isso você precisará registrar as memórias das vidas dessas pessoas, com fotografias, com lembranças, com objetos, desenhos, roupas, testemunhos. Essas pessoas que vivem nesta casa que você criou, precisam de tanto respeito e amor quanto você. É aqui que se encontra a potência da literatura. Nossos personagens também vivem.

J.K. Rowling soube fazer tudo isso e mais um pouco muito bem. Além do fato dela ter criado um universo que tanto amamos, ela soube organizá-lo em sete livros e, dando ordem ao caos, escolheu o que queria mostrar deste universo e a história foi registrada. Os personagens viveram conosco, nós conhecemos todos eles. Sua potência literária alcançou todas as mídias possíveis. E mesmo quem nunca leu Harry Potter, sabe quem ele é e sabe quem é sua criadora. Fantástico. Um legado foi criado porque regras foram criadas anteriormente, porque isso, até certo ponto, foi respeitado. E de repente, a própria autora decidiu não respeitar mais sua própria obra.

A partir do momento em que você chega no Twitter e fala que personagem tal (nunca citado em nenhum livro) era negro, que fulano de acolá era LGBT (também, nunca citado em momento algum), que havia grupo político disso e daquilo, que Dumbledore era gay (e não vale só deixar indícios, viu?), você desrespeita não só o leitor como também os seus personagens. Porque você tornou tudo conveniente para os movimentos sociais que crescem a cada dia. Você adorna com coisas que nunca existiram nesse universo que você criou. Porque não estavam lá, porque a sua decisão foi colocar apenas o que você escolheu mostrar. E a história foi registrada assim.

Eu sinceramente acharia fantástico se Dumbledore fosse assumidamente gay, ou se tivesse algum personagem negro de relevância para a história. Mas não há. E Dumbledore não é gay porque, pasmem, isso nunca foi dito em nenhum dos sete livros. E não julgo, muito pelo contrário, entendo a época em que Harry Potter foi escrito, entendo as dificuldades que a autora passou por ser mulher. Eu entendo tudo isso e, justamente por entender, eu esperava que uma antiga professora minha tivesse uma postura ética muito melhor com sua própria obra do que ela está tendo nesse momento. E eu nem vou me demorar no fato da atriz escalada para encarnar Nagini ter um viés racista, ou que Animais Fantásticos e Onde Habitam se passe no Harlem e não ter nenhum personagem negro de relevância na narrativa. E vou ignorar completamente o fator Johnny Depp desta reflexão.

“Mas ela é a criadora e pode fazer o que quiser”, você diria, como muitos costumam se escorar neste argumento pífio (até Ezra Miller, num vídeo mesquinha e petulante). Então, se depender disso, os autores podem chegar e bagunçar suas antigas obras porque eles simplesmente decidiram que sim? Isso fere o testemunho da literatura. Imagine se Tolkien retornasse e decidisse adicionar vários elementos aleatórios no universo que ele minuciosamente criou? O Senhor dos Anéis não seria o que é hoje. Deixaria de ser uma grande obra porque uma obra de fantasia sem regras é apenas um amontoado de palavras.

“Mas ela pensou em tudo isso vinte, trinta anos atrás, ela tem muitas coisas que ela não colocou nos livros e que ela quer explorar”. Certo, mas estamos falando aqui do que ela está fazendo com as coisas que ela decidiu nos mostrar do mundo de Harry Potter. Tudo o que está se tornando incoerente, contraditório e conveniente demais. Não estamos falando do que ela não escreveu, estamos analisando o que ela testemunhou anteriormente. Estamos criticando o fato dela estar desrespeitando as próprias normas e limitações de sua obra.

J.K. Rowling decidiu vandalizar sua própria casa através desses atos. Ateou fogo nos móveis, jogou lixo sobre as camas, esguichou tinta sobre os utensílios domésticos. Harry Potter, agora, não é mais Harry Potter, Harry Potter pode ser qualquer coisa, porque se tornou um mundo sem regras. Porque seu próprio legado foi ferido e negligenciado pela sua criadora. E porque ela simplesmente não sabe a hora de parar.

Eu tenho certeza que, assim como eu, o olhar que sustenta a expressão de Minerva McGonagall, nesse momento, é de mais profunda decepção.

Andrew Oliveira

26/11/18

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