A Bifobia calculada em Bohemian Rhapsody

Andrew/Deirdre
9 min readFeb 11, 2019
(reprodução)

*Contém spoilers do filme*

Bohemian Rhapsody, uma das cinebiografias mais aguardadas dos últimos tempos, angariando seus tantos prêmios e renovando o sucesso estrondoso e lendário da banda Queen, foca-se na vida do vocalista Freddie Mercury. O produto final, que mais parece ser um grande trailer de duas horas de um grande filme que nunca veremos, contém nada mais nada menos que narrativas estereotipadas do cinema Queer que vão desde os seus diálogos, à montagem e à fotografia. Não conheço tanto da biografia da banda, e sei muito pouco sobre a vida de Freddie, então nesta análise me atentarei somente às minhas percepções sobre o filme e seus preconceitos enraizados que, quer você admita ou não, estão ali. E um blockbuster sobre uma banda deste porte, repercute e entra no imaginário de muitas pessoas, pelo bem ou pelo mal. Acredito eu, mais ainda, pelo mal. Por esse motivo, acho necessário fazer algumas pontuações.

Há uma grande discussão sobre como podemos abordar narrativas LGBTs no audiovisual, que vem crescendo e ganhando mais espaço a passos de tartaruga. Mesmo que, atrás das câmeras, ainda tenha uma quantidade massiva de produtores, diretores e roteiristas homens, brancos e heterossexuais. Sobre buscar novas maneiras de representar a história da nossa comunidade, ou de criar enredos que não sejam constantemente trágicos. Já não é fácil viver sob o estigma do HIV, da violência sistematicamente aceita e do quanto a cultura heteronormativa é construída como uma arma de genocídio para qualquer um que esteja à sua margem. Mais difícil ainda, é ter que convencer uma maioria esmagadora de que somos donos de nossas próprias narrativas, e não apenas uma escolha estética, um mero filme escandaloso e chocante mostrando explicitamente — e pornograficamente — algum LGBT sofrendo.

É claro que também é necessário o audiovisual abordar e escancarar as violências cotidianas, os estigmas e estereótipos ao qual somos submetidos (vide o documentário Paris is Burning que, mesmo mostrando vidas tão sofridas, dá um jeito de dignificar e honrar aqueles que são entrevistados). Todavia, a maneira com que iremos escrever, dirigir e montar essas denúncias e reflexões, faz toda a diferença (vide, também, o filme Uma Mulher Fantástica, em que torcemos pela protagonista para que ela possa ter o direito básico de sentir seu luto). Há uma linha tênue entre denúncia e fetiche, entre reflexão e choque e, principalmente, entre um filme que agrega uma discussão válida e um que se torna um desserviço. A diferença entre essas linhas se encontra no roteiro, na montagem, na fotografia, na cenografia, nos mínimos detalhes. De um primeiro plano que visa mostrar um sentimento de aflição a um plano médio que nos dá um território. Aos diálogos ou à ausência destes. Toda cena nos conduz a interpretações, toda iluminação tem um motivo, todo plano tem um porquê.

Na condução da trajetória amorosa de Freddie e Mary, logo somos abrilhantados pelo sol, pelo amarelo-vívido, pela luz delicada que sai da janela e se espalha nos cabelos de sua amada, durante um pedido de casamento. As cores em Mary sempre nos remetem à bondade, à compaixão, à pureza, mesmo em momentos de aflição, o amarelo ainda está lá, seja nas roupas ou no plano de fundo. Logo, entendemos que Mary é o sol na vida de Freddie. Tudo sobre a relação deles é clara, límpida, casta. O que não é um problema, se o filme abrisse mais camadas em sua fotografia e montagem ao lidar com a bissexualidade de Freddie. Não abre.

Em contraponto, os momentos de homoafetividade de Freddie são sempre marcados por altos contrastes, vermelho-vibrante, sombras, anonimato. Enquanto o controverso vocalista do Queen liga para a sua amada Mary do orelhão, ele dá uma olhadela para um caminhoneiro, prestes a transar com um desconhecido. A cena é suja, escura, e o lugar também. Não é que gays e bissexuais não-assumidos não façam sexo em banheiros públicos e saunas no anonimato. Mas o filme, ao nos passar a mensagem de pureza com Mary, logo se apressa a mostrar a “sujeira” dos gays. E sua fotografia não poupa em denunciar a “tristeza” do ato. Aqui, eu bato na tecla de como isso foi dirigido: não para mostrar os receios de Freddie de se assumir, não para abrir uma reflexão acerca das saunas gays, do sexo desenfreado ou do preconceito da época. Foi dirigido para ser unicamente degradante.

Não obstante, os personagens gays quase sempre são mostrados em situações que lhe diminuem, ou festas de sexo, ou ressacas. Transformando-os em seres bestiais, inconsequentes, drogados e viciados em sexo. É tudo muito obscuro. Tudo muito cheio de contraste e pavor. Tudo muito… patético. E o filme, que se preocupa tanto em denunciar o conjunto sexo + drogas na vida de Freddie, não se dá ao trabalho de abrir uma discussão empática sobre o assunto. As coisas simplesmente são jogadas.

Os gays são como fantasmas, obsessores traiçoeiros, prontos para levar Freddie à iminente doença que tiraria sua vida. Inclusive, a cena do beijo de Paul é um assédio, como um dementador que quer sugar a vida do nosso herói. E tão logo após este momento, ele cita Mary, porque Mary, a divina mulher, é a luz. E os gays, escuridão.

Interessante pontuar este momento que intercala a gravação de uma música com Freddie frequentando festas gays. O vermelho se sobressai, unido a primeiros planos de Freddie aflito, preocupado, tenso, não sabendo o que fazer em relação a isso. Como se as suas descobertas homoafetivas só lhe trouxessem dor, nunca júbilo, nunca reflexão. E o vermelho, aqui, também já assume a inevitabilidade do HIV. O que me remete à narrativa do homem-escorpião (exaustivamente usada nos meios de comunicação. Cazuza é uma grande figura que também fora submetida a essa narrativa. Narrativa essa arraigada na homofobia e no estereótipo que interliga as relações homoafetivas com o HIV e a Aids).

“A transmissão sexual da doença, encarada pela maioria das pessoas como uma calamidade da qual a própria vítima é culpada, é mais censurada do que a de outras — particularmente porque a Aids é vista como uma doença causada não apenas pelos excessos sexuais, mas também pela perversão sexual. (SONTAG, 2007, p. 98)”.

Não preciso dizer o quanto o filme se dedica a culpar Freddie Mercury por ter adoecido. Temos duas horas de filme em que essa culpa é construída. Em que a tragédia é consequência de seu envolvimento com homens. Freddie, na vida real, poderia muito bem ter se relacionado com outras mulheres naquela época. Mas voltando à narrativa do homem-escorpião, separei um trecho do livro-ensaio de Fernando Pereira e Júlio Silva para explanar em como o produto final entranha no imaginário popular (e no audiovisual), de modo sutil, esse estereótipo.

Campanha “AIDES” (2006).

“O HIV, na propaganda em questão, é retratado como uma séria ameaça à vida, ainda em 2006, quando foi publicada. A existência de medicamentos, tratamento e todos os conhecimentos que foram adquiridos ao longo dos anos sobre a doença não foram suficientes para abrandar a conotação pejorativa que a doença adquiriu nos idos anos 80. O quarto todo branco, iluminado e minimalista, em contrapartida ao escorpião negro — e feio, cheio de partes, perigoso — cria a ideia de mácula, ressaltada pela periculosidade do infectado que é abordada em todos os aspectos da imagem. O homossexual é tido como vetor e receptáculo do mal, um homem-escorpião, marcado e sexualmente perigoso, em uma manutenção dos estereótipos fundados com o aparecimento do HIV” (PEREIRA. OLIVEIRA. 2013. p. 117).

A gente nota essa semelhança do homem-escorpião sobretudo nas cenas de Paul. Como esta, em que ele traz amigos e amantes (todos de preto, anônimos, perigosos e lascivos) enquanto Freddie e Mary estão imersos numa discussão sobre os excessos do vocalista. Os amigos de Paul rodeiam o casal como urubus sobrevoando a carniça. E aqui, mais uma vez, Mary encontra-se no amarelo, Freddie no vermelho, e os demais anônimos de preto (estudo da moda da época ou pura alegoria? Fica a seu critério).

E tem mais: as falhas de caráter de Freddie nunca têm relação com quaisquer outros problemas que ele poderia estar passando, mas estão sempre conectadas à sua sexualidade. Eu acredito que, uma figura como ele, muito provavelmente tinha mil outros problemas passando na sua cabeça para que ele agisse de tal ou tal maneira. Mesmo que entender a sua bissexualidade naquela época e naquele contexto já fosse difícil o suficiente. No entanto, o roteiro não se atém a abrir camadas. A figura Freddie, no filme, é unilateral. É quase como se o diretor pegasse na sua mão, apontasse para a tela e dissesse “está vendo? Ele foi ruim com os membros da banda (que têm famílias felizes e realizadas) por conta disso, por conta do sexo sujo com homens gays. E ele pagou seu preço”. Essa visão problemática, homofóbica, bifóbica e maniqueísta se estende à fotografia, à montagem e em praticamente todos os diálogos do filme que tenham alguma relação com a bissexualidade de Freddie. Exceto, talvez, o momento em que Mary — a figura pura — fala: “e isso (a bissexualidade) não é nem mesmo sua culpa”. Infelizmente, por mais que tenhamos este momento e, mais a tardar no filme, momentos finais bonitos de Freddie com os membros da banda em que ele revela ser soropositivo. As duas extensas horas de sexo, drogas e rock’n’roll já deixam claro o posicionamento da obra. Logo, esta fala de Mary se torna uma maneira covarde e cínica com que o roteirista tenta fugir da problemática do produto final.

Freddie só parece encontrar dignidade na homoafetividade quando já está doente e prestes a morrer. Infelizmente, no filme, o primeiro contato que ele tem com seu fiel e honesto companheiro, Jim Hutton, é uma cena invasiva (porque, logicamente, homossexuais não têm pudores ou educação). Não houve o mesmo respeito e cortejo que houve com Mary. E considerando que o próprio Jim Hutton já disse em entrevista que eles se conheceram num bar e Freddie ofereceu lhe pagar uma bebida, a escolha do roteirista de transformar este momento casual de flerte numa cena de assédio, já diz muito sobre as intenções da obra e de como a equipe por trás das câmeras quer que a homoafetividade entre no imaginário popular: que continue sendo sujo, invasivo e tóxico. Tal qual um homem-escorpião.

Bohemian Rhapsody pode angariar quantos prêmios puder, consagrar Rami Malek e toda uma equipe que se dedicou ao filme. Mas não trouxe nenhuma discussão válida para o cinema Queer a não ser seus extensos estereótipos datados e problemáticos acerca da homoafetivade, bissexualidade e sobre a crise da Aids da época. Apesar do bonito registro fotográfico de Freddie e de Jim na vida real nos créditos finais mostrando que eles foram felizes, a família tradicional, fã de Queen, que entrar nas salas de cinema para prestigiar a história de um artista, vai sair com a velha constatação: “estávamos certos, gays são sujos e a Aids é o câncer gay”. E quanto a isso, eu considero o filme um completo desserviço. Justamente o que não precisávamos em tempos tão obscuros e incertos para com a nossa comunidade LGBT.

Precisamos reivindicar nossas próprias narrativas, não permitir que filmes como este passem ilesos e, acima de tudo, não permitir que tirem nossa dignidade — nem durante a nossa vida, tampouco além dela.

Referências bibliográficas:

SONTAG, Susan. Doença como metáfora, Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PEREIRA, Fernando Fidelis. SILVA, Júlio Márcio Oliveira. Homem-Escorpião: o peçonhento sob o signo do sexo. 2013. 134 f. Livro-ensaio (bacharel em Comunicação Social). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013.

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